domingo, 30 de junho de 2013

caderno de apuntamientos // caderno de apontamentos


91.
esta cuido que inda nun te la cuntei, anton fui tou pai i l armano Eiduardo a zgalhar uns freznos a Balobo i traírun cada un sue carga, mas ua tie biu los i fui se al Barrialto i dixo se lo a tiu Jesé Fracisco, de modo que la tie del bieno se a sentar a l'antrada de l curral de l Barrialto, i you lougo manginei para mal, de que la tie staba eilhi a spera deilhes culas cargas, i lougo me fui a tener cun eilhes, bós nun oubis, abiai bos i metei la carga ne l palheiro, i assi fui, nistante mos çpachemos i la tie tubo que s'ir ambora sien los chegou a ber cula carga.
 
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esta penso que ainda não a contei, então foi o teu pai com o irmão Eduardo a cortar os galhos de uns freixos a Balobo e trouxeram uma carga cada um, mas uma mulher viu-os e foi ao Bairro Alto e disse-o ao senhor José Francisco, de maneira que a mulher dele veio sentar-se à entrada do curral do Bairro Alto, e eu logo imaginei para mal, de que a mulher estava ali à espera deles com as cargas, e logo fui a ter com eles, vós não ouvis, despachai-vos e metei a carga no palheiro, e assim foi, depressa nos despachamos e a mulher teve que ir embora sem os chegar a ver com a carga.
 
 
 

caderno de apuntamientos // cadernos de apontamentos


90.
ua beç fumus a buscar uas cargas de leinha a Bernhosino, i you dezie, á Manuel Pontas, bamos mos a çpachar que ls de Bernhosino son mui malos, i nesto mal salimos culas burras cargadas ben te un tiu cula calagouça al ombro i, quando l bimos, tubimos miedo porque l tiu zbiou se i nós pensemos que l tiu iba a chamar gente al lugar, tu que cuidas, i nós an beç d'ir a dreito fumus a arrodiar por Trabanca.
 
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uma vez fomos à procura de uns feixes de lenha a Brunhosinho, e eu dizia, ó Manuel Pontas, vamo-nos despachar porque os de Brunhosinho são muito maus, e de repente mal saímos dali com as burras carregadas vem um homem com a calagouça ao ombro e, quando o vimos, tivemos medo porque o homem se desviou e nós pensámos que ia ao povo chamar mais pessoas, tu que pensas, e nós em vez de ir pelo caminho mais curto fomos dar a volta por Travanca.
 
 
 

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89.
a la bezes quedábamos cun uns ounheiros, que tamien le cháman meija-camas ,mui grandes ne ls dedos i agarrában tanta matéria que quedában amarielhos, apuis metiemos l dedo cun esses ounheiros na auga de cozer las patatas cun casca quando staba a ferber, apuis botában aqueilha matéria fuora i pintaba le, que esses ounheiros éran mui malos, dolien muito.

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por vezes ficavamos com uns paneiriços, que também lhe chamam mija-camas, muito grandes nos dedos e enchiam-se com tanto pus que ficavam amarelos, depois metíamos o dedo com esses paneiriços na água de cozer as batatas com casca quando estava a ferver, depois deitavam aquele pus fora e fazia-lhe bem, pois esses paneiriços eram muito maus, doíam muito.

caderno de apuntamientos // caderno de apontamentos

 
88.
nun sei se sabes, mas ne l semitério habie l Campo Santo i habie l Campo de ls Mouros, i eiqui era adonde s'anterraban ls que nun éran batizados ou ls nun éran casados pula eigreija, ls que se matában i assi, essa gente iba se a anterrar sien cura, mas habie un tiu, que me lembra de ser tiu Chepolo, que iba atrás de l squife cun un Santo Cristo, quier dezir, un curcefício, i quedaba esse Campo Santo al lado de la capielha, a ua squinica, yá bés, agora nun hai nada desso que la tierra adonde un s'anterra ye todo la mesma, mas que mais dá...
 
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não sei se sabes, mas no cemitério havia o Campo santo e havia o Campo dos Mouros, e aqui era onde se sepultavam os que não eram baptizados  ou os que não eram casados pela igreja, os que se matavam e assim, essa gente ia a sepultar sem padre, mas havia um homem, que me recordo de ser o senhor Chepolo, que ia atrás do esquife com um Santo Cristo, quer dizer, um crucifíxo, e ficava esse Campo santo ao lado da capela, a um catinho, já vês, agora não há nada disso pois a terra onde se sepulta é toda a mesma, mas que importa...
 
 

quarta-feira, 26 de junho de 2013

A DIVERSIDADE LINGUÍSTICA NO ESPAÇO DA LUSOFONIA




A DIVERSIDADE LINGUÍSTICA NO ESPAÇO DA LUSOFONIA
notas utilizadas para servir de base a uma intervenção feita no VI Congresso de Escritores Moçambicanos na Diáspora [26.06.2013]

1. É habitual identificar a lusofonia com a uma só língua, o português. Esse, porém, é um erro muito grave.
2. O espaço da lusofonia é de uma grande diversidade linguística. Haverá quem saiba quantas línguas há no espaço da lusofonia, eu não sei, mas que são muitas ninguém pode ter dúvidas.
3. Essas línguas são algumas vezes línguas reconhecidas como nacionais, mas muitas vezes são ignoradas, desprezadas e até vilipendiadas.
4. Esta diversidade linguística do espaço da lusofonia é uma riqueza enorme e a forma como as línguas são tratadas é muito importante para a própria língua portuguesa. Pensemos apenas no seguinte: dificilmente poderemos gostar de quem não gosta de nós, ainda que esse alguém seja uma língua. E seria uma pena que muitas línguas [os seus falantes] se virassem contra o português.
5. Muitos dos cidadãos do espaço da lusofonia são bilingues e em muitos casos o português é uma língua materna segunda [o que não significa secundária], como é o meu caso, ou nem sequer é uma língua materna.
6. A consideração da diversidade linguística não decorre das línguas elas mesmas, mas das pessoas: as línguas apenas são importantes por causa das pessoas, estas é que são importantes. A dignidade das línguas depende da dignidade das pessoas que as falam, e se as pessoas não são tratadas com dignidade também não o poderão ser as línguas que elas falam. Esta é a chave da orientação a seguir em matéria de línguas.
7. O mirandês é a minha primeira língua materna. Com o tempo o português acabou por se tornar também minha língua materna. Hoje preciso de ambas as línguas, pois apenas sou o que sou devido a ambas e apenas consigo dizer o mundo através de ambas, pois uma só não me basta. As línguas escrevem-se, pois, a sangue e a vida [o resto é com os linguistas e isso não me interessa, nem eu tenho suficiente confiança neles para deixar entregue apenas a eles uma língua].
8. Este sentimento que é o meu, estou certo que é o de muita gente em condições similares às minhas, falando outras línguas maternas além do português.
Conto dois episódios que me mostram isso mesmo: os meus contactos com o o pintor moçambicanos Malangatana, falante de ronga, como língua materna; a recepção do meu poema “Dues Lhénguas” pelos falantes de Guarani no Brasil e no Paraguai, que dizem sentir exactamente o mesmo que eu descrevo nesse poema.
9. Era importante que fossem institucionalizados ENCONTROS E TROCAS ENTRE AS VÁRIAS LÍNGUAS DO ESPAÇO DA LUSOFONIA, que a sua literatura fosse conhecida e divulgada. Não vejo outra maneira de dar dignidade às pessoas que falam essas línguas. Doutra forma dificilmente conseguiremos fugir à ideia de as considerar como línguas menores. Mas não há línguas menores, nem o valor de uma língua deriva do número de pessoas que a fala.
10. Fica aqui o desafio, estando eu, com o mirandês disponível para o efeito. Termino com a leitura do poema DUES LHÉNGUAS que, estou certo, exprime o que muitos bilingues como eu sentem:

Andube anhos a filo cula lhéngua trocida pula
oubrigar a salir de l sou camino i tener de
pensar antes de dezir las palabras ciertas:
ua lhéngua naciu-me comi-la an merendas buí-la an fuontes i rigueiros
outra ye çpoijo dua guerra de muitas batailhas.
Agora tengo dues lhénguas cumigo
i yá nun passo sin dambas a dues.
Stou siempre a trocar de lhéngua meio a miedo
cumo se fura un caso de bigamie.
Ua sabe cousas que la outra nun conhece
ríen-se ua de la outra fazendo caçuada i a las bezes anrábian-se
afuora esso dan-se tan bien que sonho nas dues al mesmo tiempo.
Hai dies an que quiero falar ua i sal-me la outra.
Hai dies an que quedo cun ua deilhas tan amarfanhada que se nun la falar arrebento.
Hai dies an que se m’angarabátan ua an la outra
i apuis bótan-se a correr a ber quien chega purmeiro
i muitas bezes acában por salir ancatrapelhadas
i a mi dá-me la risa.
Hai dies an que quedo todo debelgado culas palabras por dezir
i ancarrapito-me neilhas cumo ua scalada
i deixo-las bolar cumo música
cul miedo que anferrúgen las cuordas que las sáben tocar.
Hai dies an que quiero traduzir ua pa la outra
mas las palabras scónden-se-me
i passo muito tiempo atrás deilhas.
Antre eilhas debíden l miu mundo
i quando pássan la frunteira sínten-se meio perdidas
i fártan-se de roubar palabras ua a la outra.
Dambas a dues pénsan
mas hai partes de l coraçon an que ua deilhas nun cunsigue antrar
i quando s’achega a la puorta pon l sangre a golsiar de las palabras.
Cada ua fui pursora de la outra:
l mirandés naciu purmeiro i you afiç-me a drumir
arrolhado puls sous sonidos calientes cumo lúrias
i ansinou l pertués a falar guiando-le la boç;
l pertués naciu-me a la punta de ls dedos
i ansinou l mirandés a screbir porque este nunca tube scuola para donde ir.
Tengo dues lhénguas cumigo
dues lhénguas que me fazírun
i yá nun passo nin sou you sin ambas a dues.
Fracisco Niebro [Cebadeiros, ed. Campo das Letras, 2000.]

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[tradução em português: Duas línguas]

Andei anos a fio com a língua torcida por a
obrigar a sair do seu caminho e ter de
pensar antes de dizer as palavras certas:
uma língua nasceu-me comia-a em merendas bebi-a em fontes e ribeiros
outra é despojo de uma guerra de muitas batalhas.
Agora tenho duas línguas comigo
e já não passo sem as duas.
Estou sempre a trocar de língua com algum receio
como se fosse um caso de bigamia.
Uma sabe coisas que a outra não conhece
riem-se uma da outra fazendo troça e por vezes zangam-se
fora isso dão-se tão bem que sonho em ambas ao mesmo tempo.
Há dias em que quero falar uma e sai-me a outra.
Há dias em que fico com uma delas tão amarrotada que se não a falar expludo.
Há dias em que se me entrelaçam uma na outra
e depois começam a correr para ver quem chega primeiro
e muitas vezes acabam por sair enrodilhadas
e eu rio-me.
Há dias em que fico completamente curvado com as palavras por dizer
e trepo por elas como uma escada
e deixo-as voar como música
com receio de que enferrujem as cordas que as sabem tocar.
Há dias em que quero traduzir uma para a outra
mas as palavras escondem-se-me
e gasto muito tempo à procura delas.
Entre elas dividem o meu mundo
e quando passam a fonteira sentem-se um pouco perdidas
e estão sempre a roubar palavras uma à outra.
Ambas pensam
mas há partes do coração em que uma delas não consegue entrar
e quando se aproxima da porta põe o sangue a bolsar das palavras.
Cada uma delas foi professora da outra:
o mirandês nasceu primeiro e eu habituei-me a dormir
embalado pelos seus sons quentes como grossas cordas
e ensinou o português a falar guiando-lhe a voz;
o português nasceu-me na ponta dos dedos
e ensinou o mirandês a escrever porque este nunca teve escola para onde ir.
Tenho duas línguas comigo
duas línguas que me fizeram
e já não passo nem sou eu sem as duas.



segunda-feira, 24 de junho de 2013

caderno de apuntamientos // caderno de apontamentos


87.
este Caderno de Apuntamientos ye percipalmente subre ls anhos que ban antre1950 i outubre de 1961, l tiempo an que me criei an Sendin; anque un cachico menos, tamien ne ls anhos antre 1921 i 1950, l tiempo de quien me criou, mius pais; de to la giente [i muita será] que eiqui se falar, será siempre cun muito respeito, sin nunca fazer juízos de balor, porque esta giente, toda esta giente, ye la mie giente, i you sou l que sou antes de mais por bias deilha, uns stan muortos i outros stan bibos, mas todos me merécen l mesmo respeito i a todos le debo muito: esta ye ua houmenaioge que you le fago, i l silenço será solo la redadeira palabra cun que este caderno acabará, i esso nun sei quando bai a ser, puis inda tengo muita cousa para cuntar: son stórias de bida cumo las bibi i nó Stória, mas nada calharei, a nun ser alguns nomes, cumo tengo feito quando se justefique, nun falarei solo de l que ye agradable mas de todo l que fur lhembráncia, puis esta ye la mie casa; 
eiqui queda l poema que publiquei ne l miu redadeiro libro ARS VIVENDI ARS MORIENDI, adonde digo o que penso de modo bien çclarado subre estas cousas:

busco ls mius muortos alta nuite 
i bou solo rue abaixo, ls uolhos 
atirados als puiales znudos, las manos 
an pregunta abierta a las jinelas cerradas, 
atamando l queimor de las aranheiras antre 
tranqueiro i quiçoeira:
bénen me rostros cun sue risa cansada, 
angúrrias nacidas de ronchas de sudor que yá secou, 
bózio de las caleijas i pracicas, currales calhados, 
i you nino mais abaixo a jogar la china;

stan bibos ls mius muortos, 
que nunca ls deixarei morrer anquanto biba:

hai quien se ampressione de chamar ls mius muortos, 
mas eilhes ténen nome, stan bibos i son todo 
l que sou:

 sien eilhes adonde l feturo me habie de botar raiç?

quien me iba a fazer cumpanha nestes anhos todos 
que yá l tiempo me lhebou?

dan me la mano quando tengo que abaixar 
al poço de adonde chubi,

son pátria adonde s’upe la mie casa,

fuonte adonde mies sedes mais fondas bében;


a las bezes, passo los an rebista un a un, 
cumo se fura un eisército formado na parada, mas 
mais me gusta 
sentar me cun eilhes a la selombra ne l puial, 
mirar para eilhes i abibá le las lhinhas zlidas de l tiempo, 
anclariá le la boç, arredundá le la risa, 
carregá le l oulor de l sudor, 
puis nanhun deilhes ousaba zoudorizante;


bien caminos que ande, muntanhas adonde chuba, 
lhénguas que daprenda, ye siempre a eilhes que 
torno para arcar, 
para falar la lhéngua que me diç anteiro, 
para sentir que hai mundo para alhá 
de l sangre i la mintira, 
i que l pan ye un don de la tierra, de l saber i de l trabalho.

//


este Caderno de Apontamientos é principalmente sobre os anos que vão entre julho de 1950 e outubro de 1961, o tiempo em que me criei em Sendim; ainda que um pouco menos, também nos anos entre 1921 e 1950, o tempo de quem me me criou, os meus pais; de toda a gente [e muita será] que aqui se falar, será sempre com muito respeito, sem nunca fazer juízos de valor, porque esta gente, toda esta gente, é a minha gente, e eu sou o que sou antes de mais devido a ela, uns estão mortos e outros estão vivos, mas todos me merecem o mesmo respeito e a todos debo muito: esta é uma homenagem que lhes faço, e o silêncio será apenas a última palavra com que este caderno acabará, e isso não sei quando será, pois ainda tenho muitas coisas para contar: são histórias de vida como as vivi e não História, mas nada calarei, a não ser alguns nomes como tenho feito quando se justifique, não falarei apenas do que é agradavel, mas de tudo o que for memória, pois esta é a minha casa;
aqui fica o poema que publiquei no meu último livro ARS VIVENDI ARS MORIENDI, onde digo o que penso de modo muito claro sobre estas coisas:

 
alta noite busco os meus mortos 
e vou sozinho rua abaixo, os olhos 
fixos nos poiais desnudos, as mãos 
em pergunta aberta às janelas fechadas, 
suavizando o ardor das teias de aranha entre 
a ombreira e a padieira:

olham-me rostos de riso cansado, 
rugas nascidas de marcas de suor que já secou, 
grito de ruelas e pracetas, becos silenciosos, 
e eu criança mais abaixo a jogar a macaca;

 estão vivos os meus mortos, 
que nunca os deixarei morrer enquanto viva:
há quem se impressione por chamar os meus mortos, 
mas eles têm nome, estão vivos e são tudo o que sou:

sem eles onde é que o futuro havia de deitar raizes?

quem me ia fazer companhia nestes anos todos

que já o tempo me levou?

dão-me a mão quando tenho de descer 
ao poço de onde subi,

são a pátria onde se ergue a minha casa,

fonte onde as minhas sedes mais fundas bebem;



às vezes, passo-os em revista um a um, 
como se fora um exército formado na parada, mas 
mais me apraz 
é sentar-me com eles à sombra no poial, 
olhá-los e avivar as linhas delidas do tempo, 
aclarar a voz, arredondar o sorriso, 
receber o seu cheiro a suor, 
pois nenhum deles usava desodorizante;


por muitos caminhos que ande, montanhas que
suba, línguas que aprenda, é sempre a eles que volto,
para respirar, 
para falar a língua que me diz inteiro, 
para sentir que há mundo para além 
do sangue e da mentira, 
que o pão é um dom da terra, do saber e do trabalho.

[Tradução de Rogério Rodrigues e António Cangueiro]

caderno de apuntamientos // caderno de apontamentos


86.
[cuntinaçon de la cuonta de tie Ana F.]

l que se passou apuis nien dá quaije para cuntar, sacórun-la pa la rue, mei znuda i acabado de tener l garoto, i scarranchórun le l garoto, yá muorto i cul braço quemido, ne l cachaço i çcalça dórun cun eilha buolta al lugar todo cula delantre, dezindo,
mirai l que fizo, i tal...
ye matá la, i asi cada un dezie la sue senténcia,
mira tu, eilha yá staba boubica quando tubo l garoto, i ende mais boubica quedou, boubica de beç, á, nun te dixe, eilhes íban cun un checote atrás i íban le dando checotadas, i fazie muito friu, que era eimbierno, todo gilado, i inda se bieno a saber quien era l pai, un tal que le chamában Boticário que acabou por se casar cun ua de la família deilha, i anton fui assi, i la tie quedou mui mala i lougo la prendírun, i inda quedou mais boubica i por esso la mandórun para África, que stubo catorze anhos ne l Tarrafal;
quando bieno de l Tarrafal staba boubica de todo, i dezie que tenie alhá un Coelho, mas traie roupa mui buona de África, sabes que fui eilha la purmeira mulhier de Sendin que ousou calçones, que até you se los fui a pedir amprestados ua beç quando fiç la quemédia de Reberto de l Diabo [1944]? i anton bieno i andaba pul lugar, de rue an rue, i falaba mui mal i trataba mui mal las pessonas, bibie duns i doutros, mas naide le daba nada, que eilha nun se afazie cun naide, nien sei cumo eilha bibie, passou las mui gordas la tie, tenie dies que staba melhor, mas noutros naide fazie bida deilha, i tenie un armano que nistante le daba uas checotadas a mano teniente, mira tu cumo son las cousas, andaba pul pobo i dezie le, cumo tal alguien, 
á tie Ana, benga a quemer ua malga de caldo
mira, come lo tu que te faç mais falta do que a mi, bai te a f. tu i l caldo,
i cuntinou siempre porqui até que se morriu, yá tu eras bien crecido i inda te lembras deilha, bibie sien naide la tratar, eilha sola, cumo nun palheiro, naide sabe de l que bibie, sabes, a las bezes la tie sentaba se cumo tal nun puial i lembraba se de l que le pasou i choraba, cuitada, i falaba mui mal de quien le fizo aqueilho, sabes, aqueilhes homes que le fazírun esso eilhes ye que merecien cadena para to la bida, i ser mandados inda mais loinje que África...

//

[continuação da história da senhora Ana F.]

o que se passou depois quase nem dá para contar, trouxeram-na para a rua, meio despida e tendo acabdo de dar à luz a criança, e puseram-lhe a criança de pernas abertas sobre os ombros, já morta e com o braço comido, e descalça deram com ela uma volta pelo povo todo com ela à frente, dizendo,
olhai o que ela fez
é matá-la, e por aí fora cada um dizia a sua sentença,
vê tu, ela já estava louca quando deu à luz a criança, e aí mais louca ficou, louca de vez, ah! não te disse, eles iam com um chicote atrás dela e iam-lhe dando chicotadas, e fazia muito frio, pois era inverno, tudo geada, e ainda se veio a saber uqem era o pai, um tal Boticário que acabou por se casar com uma da família dela, e então foi assim, e a mulher ficou muito doente e prenderam-na pouco depois, e ainda ficou mais louca e por isso a mandaram para a África, que esteve catorze anos no Tarrafal,
quando veio do Tarrafal estava completamente louca, e dizia que tinha lá um Coelho, mas trazia roupa muito boa de África, sabes que foi ela a primeira mulher de Sendim que usou calções, que até eu lhos fui pedir emprestados uma vez quando fiz o teatro de Roberto do Diabo [1944]? e então veio e andava pelo povo, de rua em rua, e falava muito mal e tratava muito mal as pessoas, vivia de uns e de outros, mas ninguém lhe dava nada, pois ela não se habituava com ninguém, nem sei como ela vivia, passou situações muito difíceis a mulher, tinha dias em que estava melhor, mas noutros ninguém fazia a conseguia aturar, e tinha um irmão que logo lhe dava umas chicotadas com toda a força, vê tu como são as coisas, andava pelo povo e dizia-lhe, por exemplo alguém
oh! senhora Ana, venha comer uma tijela de sopa
olha, come-a tu que te faz mais falta do que a mim, va-te f. tu e a sopa,
e continuou sempre por aqui até que morreu, já tu eras bem crescido e ainda te lembras bem dela, vivia sem ninguém a tratar, sozinha, como num palheiro, ninguém sabe do que vivia, sabes, por vezes a mulher sentava-se por exemplo num poial e lembrava-se do que lhe tinha acontecido e chorava, coitada, e falava muito mal de quem lhe fez aquilo, sabes, aqueles homens que lhe fizeram isso eles é que mereciam cadeia para toda a vida, e serem enviados para mais longe que África...