A DIVERSIDADE
LINGUÍSTICA NO ESPAÇO DA LUSOFONIA
notas utilizadas para
servir de base a uma intervenção feita no VI Congresso de Escritores Moçambicanos
na Diáspora [26.06.2013]
1. É habitual identificar a lusofonia com a uma só língua, o
português. Esse, porém, é um erro muito grave.
2. O espaço da lusofonia é de uma grande diversidade
linguística. Haverá quem saiba quantas línguas há no espaço da lusofonia, eu
não sei, mas que são muitas ninguém pode ter dúvidas.
3. Essas línguas são algumas vezes línguas reconhecidas como
nacionais, mas muitas vezes são ignoradas, desprezadas e até vilipendiadas.
4. Esta diversidade linguística do espaço da lusofonia é uma
riqueza enorme e a forma como as línguas são tratadas é muito importante para a
própria língua portuguesa. Pensemos apenas no seguinte: dificilmente poderemos gostar
de quem não gosta de nós, ainda que esse alguém seja uma língua. E seria uma
pena que muitas línguas [os seus falantes] se virassem contra o português.
5. Muitos dos cidadãos do espaço da lusofonia são bilingues
e em muitos casos o português é uma língua materna segunda [o que não significa
secundária], como é o meu caso, ou nem sequer é uma língua materna.
6. A
consideração da diversidade linguística não decorre das línguas elas mesmas,
mas das pessoas: as línguas apenas são importantes por causa das pessoas, estas
é que são importantes. A dignidade das línguas depende da dignidade das pessoas
que as falam, e se as pessoas não são tratadas com dignidade também não o
poderão ser as línguas que elas falam. Esta é a chave da orientação a seguir em
matéria de línguas.
7. O
mirandês é a minha primeira língua materna. Com o tempo o português acabou por se
tornar também minha língua materna. Hoje preciso de ambas as línguas, pois
apenas sou o que sou devido a ambas e apenas consigo dizer o mundo através de
ambas, pois uma só não me basta. As línguas escrevem-se, pois, a sangue e a
vida [o resto é com os linguistas e isso não me interessa, nem eu tenho
suficiente confiança neles para deixar entregue apenas a eles uma
língua].
8. Este
sentimento que é o meu, estou certo que é o de muita gente em condições
similares às minhas, falando outras línguas maternas além do português.
Conto
dois episódios que me mostram isso mesmo: os meus contactos com o o pintor moçambicanos
Malangatana, falante de ronga, como língua materna; a recepção do meu poema “Dues
Lhénguas” pelos falantes de Guarani no Brasil e no Paraguai, que dizem sentir
exactamente o mesmo que eu descrevo nesse poema.
9. Era
importante que fossem institucionalizados ENCONTROS E TROCAS ENTRE AS VÁRIAS
LÍNGUAS DO ESPAÇO DA LUSOFONIA, que a sua literatura fosse conhecida e
divulgada. Não vejo outra maneira de dar dignidade às pessoas que falam essas
línguas. Doutra forma dificilmente conseguiremos fugir à ideia de as considerar
como línguas menores. Mas não há línguas menores, nem o valor de uma língua
deriva do número de pessoas que a fala.
10. Fica
aqui o desafio, estando eu, com o mirandês disponível para o efeito. Termino
com a leitura do poema DUES LHÉNGUAS que, estou certo, exprime o que muitos
bilingues como eu sentem:
Andube anhos a filo
cula lhéngua trocida pula
oubrigar a salir
de l sou camino i tener de
pensar antes
de dezir las palabras ciertas:
ua lhéngua
naciu-me comi-la an merendas buí-la an
fuontes i rigueiros
outra ye çpoijo dua
guerra de muitas batailhas.
Agora tengo dues lhénguas cumigo
i yá nun passo sin dambas a dues.
Stou siempre a trocar de lhéngua meio a miedo
cumo se fura un caso de
bigamie.
Ua sabe cousas que la outra
nun conhece
ríen-se ua de la
outra fazendo caçuada i a las bezes
anrábian-se
afuora esso
dan-se tan bien que sonho
nas dues al mesmo tiempo.
Hai dies an que quiero falar ua i
sal-me la outra.
Hai dies an que quedo cun
ua deilhas tan amarfanhada que se nun la
falar arrebento.
Hai dies an que se m’angarabátan ua an la outra
i apuis bótan-se
a correr a ber
quien chega purmeiro
i muitas bezes
acában por salir ancatrapelhadas
i a mi dá-me la risa.
Hai dies an que quedo todo debelgado culas palabras por
dezir
i ancarrapito-me
neilhas cumo ua scalada
i deixo-las bolar cumo música
cul miedo que anferrúgen las cuordas que
las sáben tocar.
Hai dies an que quiero traduzir ua pa
la outra
mas las palabras scónden-se-me
i passo muito
tiempo atrás deilhas.
Antre eilhas
debíden l miu mundo
i quando pássan la frunteira sínten-se meio perdidas
i fártan-se de roubar palabras ua a la outra.
Dambas a dues
pénsan
mas hai partes
de l coraçon an que ua deilhas nun
cunsigue antrar
i quando s’achega
a la puorta pon l sangre a golsiar de las palabras.
Cada ua fui pursora de la outra:
l mirandés naciu
purmeiro i you afiç-me a drumir
arrolhado puls
sous sonidos calientes cumo lúrias
i ansinou l
pertués a falar guiando-le la boç;
l pertués
naciu-me a la punta de ls dedos
i ansinou l
mirandés a screbir porque este nunca tube
scuola para donde ir.
Tengo dues
lhénguas cumigo
dues lhénguas que me fazírun
i yá nun passo nin sou you sin ambas a dues.
Fracisco Niebro [Cebadeiros,
ed. Campo das Letras, 2000.]
//
[tradução
em português: Duas línguas]
Andei anos
a fio com
a língua torcida
por a
obrigar
a sair do seu
caminho e ter de
pensar
antes de dizer
as palavras certas:
uma língua
nasceu-me comia-a em merendas bebi-a em
fontes e ribeiros
outra
é despojo de uma guerra
de muitas batalhas.
Agora
tenho duas línguas comigo
e já
não passo
sem as duas.
Estou sempre
a trocar de língua
com algum
receio
como
se fosse um caso
de bigamia.
Uma sabe coisas
que a outra
não conhece
riem-se uma da outra
fazendo troça e por
vezes zangam-se
fora
isso dão-se tão
bem que sonho em ambas
ao mesmo tempo.
Há dias
em que
quero falar uma e sai-me a outra.
Há dias
em que
fico com uma delas tão
amarrotada que se não
a falar expludo.
Há dias
em que
se me entrelaçam uma na outra
e depois
começam a correr para ver quem chega primeiro
e muitas vezes
acabam por sair
enrodilhadas
e eu
rio-me.
Há dias
em que
fico completamente curvado
com as palavras
por dizer
e trepo por
elas como
uma escada
e deixo-as voar
como música
com
receio de que
enferrujem as cordas que as sabem tocar.
Há dias
em que
quero traduzir uma para a
outra
mas
as palavras escondem-se-me
e gasto
muito tempo
à procura delas.
Entre
elas dividem o meu
mundo
e quando
passam a fonteira sentem-se um pouco perdidas
e estão sempre
a roubar palavras
uma à outra.
Ambas pensam
mas
há partes do coração
em que
uma delas não consegue entrar
e quando
se aproxima da porta põe o sangue a bolsar das palavras.
Cada
uma delas foi professora da outra:
o mirandês nasceu primeiro
e eu habituei-me a dormir
embalado pelos
seus sons
quentes como
grossas cordas
e ensinou o português
a falar guiando-lhe a voz;
o português
nasceu-me na ponta dos dedos
e ensinou o mirandês a escrever
porque este
nunca teve escola
para onde ir.
Tenho duas línguas
comigo
duas línguas
que me
fizeram
e já
não passo
nem sou eu
sem as duas.