quarta-feira, 26 de junho de 2013

A DIVERSIDADE LINGUÍSTICA NO ESPAÇO DA LUSOFONIA




A DIVERSIDADE LINGUÍSTICA NO ESPAÇO DA LUSOFONIA
notas utilizadas para servir de base a uma intervenção feita no VI Congresso de Escritores Moçambicanos na Diáspora [26.06.2013]

1. É habitual identificar a lusofonia com a uma só língua, o português. Esse, porém, é um erro muito grave.
2. O espaço da lusofonia é de uma grande diversidade linguística. Haverá quem saiba quantas línguas há no espaço da lusofonia, eu não sei, mas que são muitas ninguém pode ter dúvidas.
3. Essas línguas são algumas vezes línguas reconhecidas como nacionais, mas muitas vezes são ignoradas, desprezadas e até vilipendiadas.
4. Esta diversidade linguística do espaço da lusofonia é uma riqueza enorme e a forma como as línguas são tratadas é muito importante para a própria língua portuguesa. Pensemos apenas no seguinte: dificilmente poderemos gostar de quem não gosta de nós, ainda que esse alguém seja uma língua. E seria uma pena que muitas línguas [os seus falantes] se virassem contra o português.
5. Muitos dos cidadãos do espaço da lusofonia são bilingues e em muitos casos o português é uma língua materna segunda [o que não significa secundária], como é o meu caso, ou nem sequer é uma língua materna.
6. A consideração da diversidade linguística não decorre das línguas elas mesmas, mas das pessoas: as línguas apenas são importantes por causa das pessoas, estas é que são importantes. A dignidade das línguas depende da dignidade das pessoas que as falam, e se as pessoas não são tratadas com dignidade também não o poderão ser as línguas que elas falam. Esta é a chave da orientação a seguir em matéria de línguas.
7. O mirandês é a minha primeira língua materna. Com o tempo o português acabou por se tornar também minha língua materna. Hoje preciso de ambas as línguas, pois apenas sou o que sou devido a ambas e apenas consigo dizer o mundo através de ambas, pois uma só não me basta. As línguas escrevem-se, pois, a sangue e a vida [o resto é com os linguistas e isso não me interessa, nem eu tenho suficiente confiança neles para deixar entregue apenas a eles uma língua].
8. Este sentimento que é o meu, estou certo que é o de muita gente em condições similares às minhas, falando outras línguas maternas além do português.
Conto dois episódios que me mostram isso mesmo: os meus contactos com o o pintor moçambicanos Malangatana, falante de ronga, como língua materna; a recepção do meu poema “Dues Lhénguas” pelos falantes de Guarani no Brasil e no Paraguai, que dizem sentir exactamente o mesmo que eu descrevo nesse poema.
9. Era importante que fossem institucionalizados ENCONTROS E TROCAS ENTRE AS VÁRIAS LÍNGUAS DO ESPAÇO DA LUSOFONIA, que a sua literatura fosse conhecida e divulgada. Não vejo outra maneira de dar dignidade às pessoas que falam essas línguas. Doutra forma dificilmente conseguiremos fugir à ideia de as considerar como línguas menores. Mas não há línguas menores, nem o valor de uma língua deriva do número de pessoas que a fala.
10. Fica aqui o desafio, estando eu, com o mirandês disponível para o efeito. Termino com a leitura do poema DUES LHÉNGUAS que, estou certo, exprime o que muitos bilingues como eu sentem:

Andube anhos a filo cula lhéngua trocida pula
oubrigar a salir de l sou camino i tener de
pensar antes de dezir las palabras ciertas:
ua lhéngua naciu-me comi-la an merendas buí-la an fuontes i rigueiros
outra ye çpoijo dua guerra de muitas batailhas.
Agora tengo dues lhénguas cumigo
i yá nun passo sin dambas a dues.
Stou siempre a trocar de lhéngua meio a miedo
cumo se fura un caso de bigamie.
Ua sabe cousas que la outra nun conhece
ríen-se ua de la outra fazendo caçuada i a las bezes anrábian-se
afuora esso dan-se tan bien que sonho nas dues al mesmo tiempo.
Hai dies an que quiero falar ua i sal-me la outra.
Hai dies an que quedo cun ua deilhas tan amarfanhada que se nun la falar arrebento.
Hai dies an que se m’angarabátan ua an la outra
i apuis bótan-se a correr a ber quien chega purmeiro
i muitas bezes acában por salir ancatrapelhadas
i a mi dá-me la risa.
Hai dies an que quedo todo debelgado culas palabras por dezir
i ancarrapito-me neilhas cumo ua scalada
i deixo-las bolar cumo música
cul miedo que anferrúgen las cuordas que las sáben tocar.
Hai dies an que quiero traduzir ua pa la outra
mas las palabras scónden-se-me
i passo muito tiempo atrás deilhas.
Antre eilhas debíden l miu mundo
i quando pássan la frunteira sínten-se meio perdidas
i fártan-se de roubar palabras ua a la outra.
Dambas a dues pénsan
mas hai partes de l coraçon an que ua deilhas nun cunsigue antrar
i quando s’achega a la puorta pon l sangre a golsiar de las palabras.
Cada ua fui pursora de la outra:
l mirandés naciu purmeiro i you afiç-me a drumir
arrolhado puls sous sonidos calientes cumo lúrias
i ansinou l pertués a falar guiando-le la boç;
l pertués naciu-me a la punta de ls dedos
i ansinou l mirandés a screbir porque este nunca tube scuola para donde ir.
Tengo dues lhénguas cumigo
dues lhénguas que me fazírun
i yá nun passo nin sou you sin ambas a dues.
Fracisco Niebro [Cebadeiros, ed. Campo das Letras, 2000.]

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[tradução em português: Duas línguas]

Andei anos a fio com a língua torcida por a
obrigar a sair do seu caminho e ter de
pensar antes de dizer as palavras certas:
uma língua nasceu-me comia-a em merendas bebi-a em fontes e ribeiros
outra é despojo de uma guerra de muitas batalhas.
Agora tenho duas línguas comigo
e já não passo sem as duas.
Estou sempre a trocar de língua com algum receio
como se fosse um caso de bigamia.
Uma sabe coisas que a outra não conhece
riem-se uma da outra fazendo troça e por vezes zangam-se
fora isso dão-se tão bem que sonho em ambas ao mesmo tempo.
Há dias em que quero falar uma e sai-me a outra.
Há dias em que fico com uma delas tão amarrotada que se não a falar expludo.
Há dias em que se me entrelaçam uma na outra
e depois começam a correr para ver quem chega primeiro
e muitas vezes acabam por sair enrodilhadas
e eu rio-me.
Há dias em que fico completamente curvado com as palavras por dizer
e trepo por elas como uma escada
e deixo-as voar como música
com receio de que enferrujem as cordas que as sabem tocar.
Há dias em que quero traduzir uma para a outra
mas as palavras escondem-se-me
e gasto muito tempo à procura delas.
Entre elas dividem o meu mundo
e quando passam a fonteira sentem-se um pouco perdidas
e estão sempre a roubar palavras uma à outra.
Ambas pensam
mas há partes do coração em que uma delas não consegue entrar
e quando se aproxima da porta põe o sangue a bolsar das palavras.
Cada uma delas foi professora da outra:
o mirandês nasceu primeiro e eu habituei-me a dormir
embalado pelos seus sons quentes como grossas cordas
e ensinou o português a falar guiando-lhe a voz;
o português nasceu-me na ponta dos dedos
e ensinou o mirandês a escrever porque este nunca teve escola para onde ir.
Tenho duas línguas comigo
duas línguas que me fizeram
e já não passo nem sou eu sem as duas.



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